Author Archive for: Flávia Fávari

Vygotsky dedicou seus estudos às funções psicológicas superiores do homem, ou seja, situações que envolvem memória, imaginação, simbolização, projeção, vontade e percepção. A estrutura dos processos mentais sofisticados, próprios dos seres humanos, é fortemente influenciada pela organização cultural do mundo real. Segundo o pensador bielo-russo, a relação do homem com a realidade é mediada, ou seja, para ele há um elemento auxiliar no vinculo do homem com o mundo real. A relação, portanto, não é direta o que a torna mais complexa. Existem dois tipos de mediadores: os instrumentos e os signos. O primeiro, embasado pela teoria marxista, refere-se ao uso de ferramentas na relação com as coisas do mundo (usar uma pá para cavar um buraco). O trabalho seria o motor de criação e de uso dessas ferramentas. Já o segundo, auxilia nos processos psicológicos e se dá de maneira simbólica.

O educador, portanto, não deve exigir do seu aluno, um empenho estritamente individual e que valha apenas de suas potencialidades “internas” (como memória e atenção), visto que as mediações colaboram no aumento da capacidade e da complexidade psicológica. A saber, o experimento realizado pelo pesquisador e por seus colaboradores que consistia em apertar determinada tecla quando certa imagem fosse mostrada e que indicou que quando colocado nessas teclas marcas identificadoras as crianças testadas passaram a ter uma ação menos impulsiva, e, portanto, mais sofisticada. Fico a pensar sobre a aplicabilidade e a eficácia dos métodos de avaliação realizados, sobretudo nos cursos de biológicas e exatas do Ensino Superior, em que o aluno deve memorizar todas as formulas e postulados de determinada matéria. Acredito que tais atividades seriam mais benéficas se não fossem diretas e pudessem ser mediadas, seja por um livro, seja por colegas ou até mesmo pelo próprio professor.

Uma das descobertas psicológicas e metodológicas de Vigotsky de extrema valia diz respeito a Zona de Desenvolvimento Proximal, que chamaremos aqui de ZPD. Segundo este conceito, para se analisar o desenvolvimento de um indivíduo deve-se levar em consideração não somente o que o individuo já aprendeu, mas também o que ainda está em fase de amadurecimento. Em outras palavras, é a distância entre o nível de desenvolvimento real (quando a criança aprende a fazer algo de forma independente) e o nível de desenvolvimento potencial (a ação individual é orientada por outra pessoa). A ZPD é compreendida como um domínio psicológico mutável, isto é, em constante transformação.

Logo, para compreender o desenvolvimento de um indivíduo deve-se levar em consideração não só os processos já consolidados, mas também, aqueles que dependem da ajuda de outra pessoa para se realizarem. Vale ressaltar, que para o pensador não é em todo momento da vida de um indivíduo que ele está pronto para receber a ajuda de alguém. Por exemplo, uma criança de cinco anos pode conseguir montar uma torre sozinha, a de três anos conseguiria com a assistência de outro indivíduo e a de um ano não colocaria tal ação em prática nem mesmo se tivesse o auxílio de outra pessoa. Fica claro, portanto, que Vygotsky coloca no centro do desenvolvimento das funções psicológicas do homem as relações sociais. Afirma Martha Korl: “O desenvolvimento individual, se dá num ambiente social determinado e a relação com o outro, nas diversas esferas e níveis da atividade humana é essencial para o processo de construção do ser psicológico individual.” (1997, p. 60)

Vygotsky, a meu ver, valoriza a diferença na medida em que acredita que quanto mais heterogêneo for o grupo, mais ZPD (as diferenças potencializam a ZPD) existe e, portanto, mais há cooperação entre os sujeitos. Se um grupo está na mesma ZPD, não há o espanto e assim como Piaget, Vygotsky acredita que a vontade e o desejo são os combustíveis que incitam a aprendizagem. Para o pensador a criança que sabe mais sobre determinado assunto, deve e pode ajudar o outro, ou seja, ele acredita na mediação e no apoio entre os pares. Nota-se então que Vygotsky, aborda e defende duas práticas que se fazem muito contemporâneas: a cooperação e a noção de heterogeneidade entre as pessoas não como um problema a se resolver, mas como um elemento enriquecedor.

Acredito que a cooperação e a diferença entre os indivíduos, vistas sob tal ótica, contribuem, em muito, para a prática do educador. Primeiro, porque adotando tal postura penso que a possibilidade de desenvolvimento dos alunos seria aprimorada. Segundo, pois um ambiente norteado por esses dois pressupostos me parece ser pouco hierárquico e menos apoiado no poder autoritário. E terceiro, considero que se o educador respeita as diferenças em classe e incita o trabalho cooperativo, isso é passado pera seus alunos, de modo a formar um mundo mais igualitário, democrático e solidário.

Na concepção de Vygotsky, o aprendizado impulsiona o desenvolvimento (possuem uma complexa inter-relação)1, logo, para ele, a escola contribui na construção do ser psicológico adulto. É preciso que essa instituição leve em consideração as etapas de desenvolvimento já consolidadas na criança e que tenha em vista, atingir uma finalidade posterior que esteja em consonância com a faixa etária e as habilidades de cada grupo. Para ele, o professor deve interferir na ZPD de modo a instigar os avanços, a ajudar os alunos a realizar procedimentos que sozinhos não conseguiriam. “Demonstração, assistência, fornecimento de pistas, instruções” (1997, p.62) são algumas das características que o professor deve ter. Focar a prática do professor não no aprimoramento do que já está dado, mas no que está por vir, embute no professor outra tarefa e exige dele, a meu ver, uma grande sensibilidade para identificar quando o aluno está na ZPD. Vale lembrar que esta interação, deve ser realizada não só entre aluno e professor, mas também entre os pares. Ideia que considero importante na medida em que coloca o próprio aluno como detentor de conhecimentos que podem ser compartilhados e não como indivíduo passível somente a absorção de saberes de outros. O pensador enobrece o educando ao afirmar que este não é uma tábula rasa e que os significados que o grupo cultural lhe ensina são por ele reelaborados, resignificados.

Visto a importância da ZPD no desenvolvimento da criança deve-se pensar nos fatores que favorecem a sua abertura, pode-se citar: o contato com a cultura, a linguagem, a afetividade e a brincadeira. Acho de grande valia comentar um pouco sobre cada um desses fatores. A exemplo do caso dos “meninos lobos”, percebe-se que se nos privarmos dos pares, não nos comportaríamos como humano, isto é, o homem só se porta enquanto homem quando se relaciona com outros homens da mesma cultura. Essa asserção vai de encontro ao pressuposto tão caro à Antropologia de que eu só existo enquanto estabeleço relação com o Outro.

A linguagem nasce de uma necessidade social e tem origem e desenvolvimento diferente do pensamento. A linguagem possui duas funções: a comunicação (contato social) e o pensamento generalizante, que consiste no agrupamento de elementos da mesma categoria e na diferenciação deste com outros de categorias diferentes. Em certo momento do desenvolvimento filogenético, pensamento e linguagem se encontram e a linguagem torna-se racional e o pensamento verbal. O funcionamento psicológico tem a possibilidade então, de se sofisticar.

Vygotsky encara a afetividade como importante para a abertura da ZPD. Vale dizer, que a relação afetiva também pode ser norteada pelo ciúme, pelo ódio e pela raiva. É perceptível no caso do menino2 que imita o pai cantando a música dos Beatles Don’t let me down o afeto que conduz a relação existente entre ambos. Aliás, a imitação, na perspectiva de Vygotsky, evidencia que a criança está na ZPD. Essa informação é válida na medida em que nunca me atentei sobre o que a imitação revela no desenvolvimento da criança. Ela é entendida não como mera cópia de algo, mas como “reconstrução individual daquilo que é observado nos outros” (1997, p.63).

Colocar o brinquedo como elemento que auxilia no desenvolvimento da criança foi, a meu ver, muito interessante. O pensador privilegia a brincadeira de faz de conta, pois a criança passa a se relacionar não com o objeto concreto, mas sim com o seu significado (um cabo de vassoura pode ser um avião). Esta atividade também é importante na medida em que a brincadeira possui regras, elementos consideráveis para a compreensão das particularidades dos papéis que a criança desempenha. Brincar, do ponto de vista de Vygotsky, é, portanto, uma ação pedagógica. Espaços que privilegiem essa atividade devem ser respeitados e incitados. A escola deve, portanto, permitir a imaginação criativa. Saber sobre seu ponto de vista acerca do brincar foi muito enriquecedor para meu desenvolvimento.

Dessa maneira, aprender sobre Vygotsky muito contribuiu para minha formação, tanto acadêmica, quanto pessoal. A meu ver, ele é um pensador que valoriza o papel do educador na formação do sujeito, o que faz com que seja importante que as ações pedagógicas sejam sempre revistas. Pensando o módulo como um todo, isto é, levando em consideração o que aprendemos sobre Piaget e Vygotsky, vejo que agora possuo conhecimento sobre duas teorias que podem me ajudar na prática pedagógica. As duas apresentam ferramentas para contemplar minhas dúvidas sobre determinado problema. Elas, portanto, não se excluem, mas dialogam o tempo todo entre si. Convergindo e divergindo em determinados pontos Piaget e Vygotsky apresentam diversas ferramentas que auxiliam o fazer pedagógico.

 

 

Referências Bibliográficas

 

– OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: Aprendizado e desenvolvimento: Um processo sócio-histórico. 4. Ed. São Paulo: Scipione, 1997.

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1 Como educadores ouvimos que as crianças devem ser motivadas para aprender, ao estudar Vygotsky uma nova perspectiva me foi apresentada: as crianças precisam aprender para serem motivadas (aprendizagem conduz ao desenvolvimento)

 

Heloá Barroso Cintra – RA: 083627

O atual estado das formas de gerenciamento da educação pública brasileira são frutos de profundas mudanças ocorridas em períodos relativamente recentes da história nacional. Destacam-se nesse contexto as reformas de caráter neoliberais ocorridas a partir dos primeiros anos da década de 1990, com as reformas de estado realizadas pelo então presidente Fernando Collor de Mello.

Esse novo arranjo responde diretamente a exigências de instituições internacionais(FMI, Banco Mundial, ONU, dentre outros) e países capitalistas centrais. Tal orientação requer reformas importantes no sistema educacional nacional, a fim de garantir a manutenção da ordem vigente, além de atrelar os créditos e auxílios fiscais dados ao país à adequação quanto às políticas desejadas. Afirma Heloani e Piolli:

 

As reformas educacionais dos anos 1990 se inserem no contexto da reforma do Estado cujo paradigma foi o da racionalidade empresarial. Novos métodos e conceitos oriundos do mercado são amplamente disseminados. Um dos conceitos mais utilizados é o de gestão em substituição ao de administração. (HELOANI e PIOLLI, 2010, p. 17)

 

Nesse contexto, vê-se uma gradual adequação do estado brasileiro às exigências dos países desenvolvidos, incorporando culturas comumente atreladas à ambientes empresariais. Assim, a administração da educação pública toma para si estratégias e condutas até então estranhas ao sistema de ensino. Segundo os autores:

 

Os valores e os conceitos que decorrem do mundo dos negócios e da lógica competitiva surgem, no âmbito escolar, por meio do conteúdo das reformas educativas, e passam a exigir de todos os envolvidos no processo de ensino uma nova “atitude mental”, uma nova subjetividade. (idem, p. 14)

 

Logo, esse novo contexto domina e reorganiza o trabalho e a subjetividade dos atores da escola. Assim como outros países da América Latina, o Brasil foi influenciado pelo modelo inglês de reforma do Estado, significando a redução [a redução?] de gastos nas políticas de proteção social. O princípio de igualdade é então substituído pelo de equidade. Segundo Heloani e Piolli (idem, p. 16) essa “‘equidade social’ far-se-ia presente, principalmente nas políticas de financiamento, a partir de custos mínimos assegurados a todos”. Segundo Oliveira (2004), os sistemas escolares passam então a ter como objetivo a formação dos individuo visando a empregabilidade, visto que trabalho regulamentado e formal só é possível via escolarização. Além disso, caberá à escola desenvolver políticas públicas compensatórias com o intuito de conter a pobreza.

Guiados pelas propostas do Banco Mundial para a educação, o Brasil passa a adotar novas condutas. Parceria com o setor privado e um ideário fundamentado na eficácia, competência, qualidade e equidade são algumas das particularidades da nova postura do país no setor educacional. A descentralização também é uma das principais características desse processo, que transfere as principais responsabilidades para níveis políticos regionais, colocando a escola como um organismo central e autônomo, capaz de gerenciar seus próprios recursos e realidades. O serviço público, inclusive a educação, passa a ser avaliado através de metas e resultados quantitativos. Segundo Gaulejac:

 

Sob a capa do pragmatismo operatório e objetivo, o gerencialismo vai se constituindo como uma ideologia utilitária que vai traduzindo as atividades humanas em indicadores de desempenho. A ciência gerencialista busca sua legitimidade no campo das ciências exatas, às quais oferecem o suporte para a construção de um ideal do humano restrito à condição de recurso para sua instrumentalização (GAULEJAC, 2007 apud HELOANI e PIOLLI, 2012, p. 31)

 

Nesse sentido, pode-se afirmar que tais mudanças políticas imbuíram as escolas de muitas responsabilidades que não faziam parte de seu escopo até então, estando restritas aos órgãos do sistema educacional, sem a devida certeza quanto a capacidade estrutural das unidades de ensino assumirem tais obrigações. Dessa forma, há um estrangulamento das responsabilidades, e a escola passa então a se ver como principal responsável do gerenciamento de sua realidade, muitas vezes sem as devidas condições para tal.

 

Referências Bibliográficas

 

HELOANI, Roberto; PIOLLI, Evaldo. Educação, Economia e Reforma do Estado: algumas reflexões sobre a gestão e o trabalho na educação. Revista APASE, n. 11, maio/ 2010, p. 14-21.

 

Heloá Barroso Cintra – RA: 083627

 

 

 

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Fonte:http://escolamunicipalazevedosodre.blogspot.com.br/2012/05/fazendo-arte.html

 

 

Por conta de uma contratação de trabalho recente na cidade de São Paulo, – serei educadora/mediadora de uma exposição sobre a Amazônia – estou tendo um mês de formação afim de adquirir os conteúdos próprios da exposição, além de pensar as múltiplas possibilidades da tarefa de um arte-educador. Nesse sentido, gostaria de compartilhar com vocês alguns dos conteúdos de uma aula preciosa que tive no dia 12 de outubro e as inquietações surgidas a partir dela, que acredito que cabem muito bem às discussões que essa disciplina suscitam.

Neste dia, tivemos um encontro com dois índios do povo indígena Ticuna, Sansão e Hilda, que viajaram até nós exclusivamente para essa conversa. Os Ticuna vivem em uma região fronteiriça amazônica que compreende Brasil, Peru e Colômbia e sua população está distribuída em mais de 20 terras indígenas, conformando o povo indígena mais numeroso da Amazônia brasileira. Vivem nos seis municípios da região do alto Solimões: Tabatinga, Benjamim Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins. (http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ticuna).

Ambos são professores de uma escola indígena Ticuna no município de Benjamin Constant (AM). Hilda desde o início se mostrou mais tímida, de passos leves e andar cativante; mais observou que falou. Sansão Ricardo Flores, – esse é seu nome de batismo que lhe foi dado por evangélicos norte-americanos na época de seu nascimento – pós-graduado em Educação em “escola de branco” [não anotei onde], é um exímio orador: deixa o microfone somente quando Hilda vai até a frente apresentar uma canção que encanta o grupo. Ele, aliás, parece ter se tornado importante liderança política indígena de sua região: é um dos 20 nomes do movimento indígena que compõem a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), instaurada em abril de 2007 pelo Ministério da Justiça; liderou o 1º Manifesto de Renovação e Reflexão do Movimento dos Povos Indígenas do Estado do Amazonas (http://sandrotikuna.blogspot.com.br/2011/03/i-manifesto-de-renovacao-e-reflexao-do.html); foi candidato a vereador do município de Benjamin Constant em 2012 pelo PT; está conectado à rede mundial de computadores e às redes sociais (tem conta no Facebook e no LinkedIn).

Conforme relataram, em 1986, foi criada a Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues (OGPTB), com sede na aldeia Filadélfia (município de Benjamin Constant) – mais informações sobre a Organização aqui: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ticuna/1350 – que surge como resultado da luta pela demarcação de terras na década de 70: era necessária a defesa de uma educação indígena que conscientizasse a população para a busca de seus direitos e a valorização de sua cultura. A dupla tem total clareza do papel que a educação pode exercer na defesa de sua cultura e de seu território, constantemente ameaçados pelos interesses do capital na região (de latifundiários, pecuaristas, com obras de grande impacto, etc). Ao longo da conversa, diziam frases como: “A nossa vida está em jogo!”; “Nós, os que mantém a cultura [Ticuna]!”.

Assim, um elemento de extrema importância aqui é a questão da língua materna, sua aprendizagem e manutenção; Sansão conta que desde 1982 vem se desenvolvendo uma grafia que aproxima a língua Ticuna do alfabeto “brasileiro” e inclusive um dicionário nesses moldes foi produzido pela pesquisadora Marília Facó, já que antes a língua era sobretudo oral. Dessa forma, todos os Ticuna devem saber tanto sua língua materna, quanto o português e por isso, ela aparece como disciplina da grade curricular dessas escolas bilíngues indígenas.

Posto isso, é importante citar um instigante trabalho desenvolvido conjuntamente pelos 224 professores Ticuna da região, que é a confecção de livros de histórias principalmente para serem utilizadas nas escolas indígenas. A grande preocupação do projeto, de acordo com Sansão, é registrar os conhecimentos e as crenças do povo Ticuna, dada a constante pressão da sociedade capitalista sobre seus territórios e cultura: “Através da escrita se pode deixar para os filhos [a cultura]”. Está disponível no site do “Domínio Público” uma das obras resultantes do projeto, o “Livro das Árvores” (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002040.pdf )

É o ensino da língua materna e a inclusão de outros elementos culturais, como a celebração da Festa da Moça Nova por exemplo, que parecem diferenciar a estrutura curricular de uma escola indígena Ticuna com relação àquela estudada no restante do Brasil. No mais, as demais disciplinas (Matemática, Ciências, etc) são as mesmas para todo o país. É justamente esse ponto que queria discutir.

Peço que leiam essa reportagem (http://www.cespe.unb.br/noticiashtml/LerNoticia.asp?IdNoticia=458).

Tais provas para avaliação de desempenho puderam ser lidas pelos candidatos em sua língua materna. Mas qual o verdadeiro alcance de uma educação que dissemina um conteúdo padronizado para uma diversidade tão grande de alunos e de vivências [estamos falando de todo o território nacional]? Foi esse questionamento que me levou a pesquisar sobre a educação escolar indígena.

A Constituição de 1988 é um grande marco no tratamento da questão indígena no Brasil. Em uma seção destinada especialmente a esses povos, ficou estipulado que: “São reconhecidas aos índios sua organização social, costumes, línguas e tradição e os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Constituição Federal Brasileira, 1988, Capítulo VIII, Art. 231). A chamada Constituição Cidadã é fundamental porque buscou abandonar a postura integracionista que havia permeado nossa legislação até então, que considerava o indígena como “categoria transitória” fadada à extinção e que, por isso, deveria ser incorporada e assimilada à “comunidade nacional”. Nela, foram reconhecidos os direitos “originários” dos povos indígenas com relação às terras ocupadas tradicionalmente por eles, incluídas aí a porção territorial reservada à preservação do meio ambiente e à sua reprodução física e cultural.

No que tange especificamente à educação indígena, ficou estabelecido no capítulo sobre Ensino Fundamental, que: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (idem, Art. 210). Com isso, criou-se as bases legais para a construção da escola indígena, assegurando o uso das línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem.

O detalhamento e as melhores definições para esses direitos, contudo, tomariam forma a partir da legislação complementar e ordinária: com a aprovação pelo Congresso Nacional da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996 e a promulgação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2001; que foram fundamentais para a criação, a nível estadual, de legislações e normas específicas para a adequação de disposições nacionais às particularidades locais. Tais documentos são centrais na questão da educação escolar indígena por estabelecerem detalhadamente o direito dessas comunidades a uma educação bilíngue, intercultural, comunitária, específica e diferenciada.

Em 1991, o MEC (Ministério de Educação e Desporto) –passa a coordenar os temas relacionados à educação escolar indígena, – que nos trinta anos anteriores tinham sido da alçada da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) – integrando-a no âmbito da educação para todos os brasileiros. Esse órgão se valeu das experiências que vinham sendo realizadas por organizações civis desde os anos 70 e dos conceitos e metodologias produzidas por elas, buscando uma atuação de acordo com essas linhas de ação educacional. A execução dessas políticas passou a ser da responsabilidade das secretarias estaduais e municipais.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 trouxe diversas mudanças com relação às leis homônimas de 1971 de 1961; dentre elas está a inclusão de normas especificas relacionadas à educação escolar para os povos indígenas, inexistentes nas versões anteriores. Nela, ficou estabelecido que: “O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas” (ibidem, Art. 78). No texto, foi recomendado que as comunidades indígenas sejam ouvidas na definição dos programas a elas relacionados e que os próprios indígenas sejam “pesquisadores de suas próprias línguas, história, alfabetizadores em suas línguas maternas, e como escritores e redatores de material didático-pedagógico em suas línguas maternas […], professores de português como segunda língua e redatores de materiais didático-pedagógicos” (MEC, 1993, p. 21)” (MONTE, 2000: 122-123). Com isso, a nova LDB possibilita o registro e o resgate das memorias históricas dos mais diversos povos indígenas brasileiros, suas praticas socioculturais e sua língua materna; disponibiliza o acesso aos conhecimentos técnico-científicos produzidos pela “sociedade nacional” e dá liberdade para que cada escola indígena defina seu respectivo projeto político-pedagógico.

Em mais um aprofundamento de legislação específica, a Resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu “no âmbito da educação básica, a estrutura e o funcionamento das Escolas Indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e ordenamento jurídico próprios, e fixando as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica” (CNE, 1999). A CNE estipula que essas escolas sejam “unidades próprias, autônomas e específicas no sistema estadual”, de modo a romper com a prática muito recorrente até então de tratar tais escolas como extensão de escolas urbanas ou rurais.

O Plano Nacional de Educação (PNE-Lei 10.172/01) apresenta um capítulo inteiro sobre a educação escolar indígena, dividido em três partes. Nele, foi reafirmada a responsabilidade legal dos sistemas estaduais de ensino pela educação indígena (que pode ser delegada aos municípios) e foi prevista a ampliação das linhas de financiamento para que a União, em colaboração com os Estados, equipe as escolas indígenas com recursos didático-pedagógicos básicos. Foi estabelecida a profissionalização do magistério indígena, mediante concurso publico também diferenciado para acessar a carreira, e estipuladas as metas para garantir uma formação especifica e contínua para os professores(as) indígenas pelos Estados. Como objetivos e metas, o PNE estipulou a universalização da oferta de programas educacionais para todas as séries do ensino fundamental nas escolas indígenas, assegurando a elas autonomia, financeira a pedagógica, e garantindo a participação das comunidades indígenas nas decisões relativas ao seu funcionamento.

Com isso posto, pode-se inferir que a escola, instituição de origem e estrutura ocidental, pode ser apropriada pelos povos indígenas de maneira que seja ressignificada e transformada em um instrumento a seu favor. É um avanço constitucional significativo, quando comparado às leis anteriores, a estipulação de uma escola indígena que seja gerida pelas próprias comunidades indígenas de cada localidade, cujo corpo docente seja cada vez mais formado por professores locais. O Estado brasileiro toma para si a tarefa de estimular os processos de sistematização, registro e valorização de saberes e conhecimentos tradicionais; a escola indígena proposta pelo governo, nesse sentido, pode ter papel crucial na manutenção, valorização e mesmo resgate das línguas maternas de maneira a registrá-las na forma escrita (já que muitas vezes fazem parte exclusivamente da tradição oral).

É o que parece ter acontecido com os Ticuna – salientando o fato de que sua organização para a luta de uma escola indígena é anterior à Constituição Cidadã – e também o povo Wayana e Aparai, povos de língua karib que habitam a região de fronteira entre o Brasil (rio Paru de Leste, Pará), o Suriname (rios Tapanahoni e Paloemeu) e a Guiana Francesa (alto rio Maroni e seus afluentes Tampok e Marouini). (http://pib.socioambiental.org/pt/povo/wayana). Um pequeno parênteses: alguns engenheiros do povo Wayana e Aparai ficaram responsáveis por construir na exposição uma réplica de sua casa cerimonial, denominada tukuxipan. Para o dia da inauguração, 29 de novembro, vieram vários integrantes, principalmente os mais velhos (conhecedores das danças), para fazerem algumas apresentações. Neste domingo, dia 1, depois da última apresentação que fariam para o “Amazônia Mundi”, conversaram com os educadores e com alguns visitantes ali presentes. Pois bem, durante essa conversa, eles nos contaram que as crianças e jovens de suas comunidades frequentam a escola e que a instituição é importante para a manutenção e aprendizagem da sua língua e também do português. Segundo relataram ainda, não são muitos da nova geração que se interessam por aprender algumas de suas atividades, como a dança. A pajelança, por exemplo, é algo que se aprende com os (pajés) mais velhos; o pajé que estava conosco aparenta estar bem velhinho e não há ninguém aprendendo com ele…

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Se a existência de escolas indígenas parece ser positiva nesse aspecto, todavia uma questão fica latente: em que medida o Estado rompe de fato com a atitude integracionista que condena a partir da Constituição de 1988 ao “oferecer” uma instituição cuja estrutura é criticada até mesmo pelo restante da comunidade nacional e uma grade curricular que se vale muitas vezes dos mesmos conteúdos (como o ensino do português, de matemática, etc)? Será que é realmente necessária uma apropriação dessa instituição ocidental para a produção de conhecimentos e saberes nas comunidades tradicionais? Nesse sentido, podemos questionar sobretudo como o fortalecimento e a manutenção da cultura local se dão na prática.

 

 

Referências Bibliográficas

FREIRE, José Ribamar Bessa. Trajetória de muitas perdas e poucos ganhos. In: Educação escolar indígena em Terra Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro: Ibase, julho de 2004

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Um território ainda a conquistar. In: Educação escolar indígena em Terra Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro: Ibase, julho de 2004

MONTE, Nietta Lindenberg. E agora, cara pálida? Educação e povos indígenas, 500 anos depois. Rev. Bras. Educ. [online]. 2000, n.15, pp. 118-133